Você sabe o que é Testamento Vital e Diretiva Antecipada de Vontade?
Eles são fundamentais para definir o que deve acontecer com você caso perca a autonomia
Quantas vezes ouvimos ou dizemos para os outros, e para nós mesmos, que nosso sonho é morrer dormindo, sem dor, sem sofrimento? Poucos privilegiados conseguem sair do cenário da vida dessa maneira, só cerca de 10% têm essa sorte. A realidade dura e crua é que não temos nenhum controle sobre nossa saúde ou sobre a nossa finitude.
Claro que podemos evitar fatores de risco, manter uma dieta saudável e fazer atividades físicas, mas esse controle não passa de uma grande ilusão. Por isso é bom pensar seriamente sobre como você gostaria de ser cuidado no caso de uma vida longa, ou de uma doença ou acidente, que possam tirar sua capacidade de decisão ou comunicação.
Quem consegue antecipadamente detalhar o que quer para o final de sua vida e para sua morte pode se manter digno e autônomo segundo sua própria vontade. Além disso, é um grande alívio para familiares e profissionais de saúde que não precisarão decidir por aquela pessoa, sem saber o que ela desejava para si.
O tema é cada vez mais atual, embora muitos fujam dele. O final da vida, Diretiva Antecipada de Vontade e Testamento Vital foram assuntos discutidos em várias mesas no recente Congresso Brasileiro de Geriatria e Gerontologia, realizado no Rio de Janeiro. E não por acaso.
O envelhecer já não é mais privilégio de poucos. Se hoje temos 30 milhões de idosos; em 2050, seremos 64 milhões, e a expectativa de vida hoje é 75,8, um acréscimo de três meses e 11 dias em relação a 2015. Esses números constam da Tábua de Mortalidade de 2016 e foram divulgados recentemente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“É importante determinar o que você quer enquanto está saudável”, diz o promotor Luiz Claudio de Carvalho de Almeida.
Então, números à parte, vamos voltar ao assunto: você conversa com parentes e médicos sobre o que quer para o final da sua vida? Você amplia essa conversa, focando nas dimensões física, psicológica e espiritual?
A geriatra Claudia Burlá tem muita familiaridade com o tema e sabe como é importante colocar o assunto no dia a dia, inclusive na relação médico-paciente. Ela criou a Comissão Permanente de Cuidados Paliativos da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e fez Doutorado em Bioética em Portugal.
“Nós, médicos, somos os guardiões da autonomia do paciente, devemos antecipar essa conversa com delicadeza e seriedade. Faz parte da nossa ação planejar e cuidar, saber os valores do paciente, construir uma relação de confiança”, explica.
Ela lembra que manter a autonomia até o final da vida é o sonho de todos nós, justamente porque é difícil nos imaginar no futuro dependendo de alguém e sem condições de decidir.
“Mas é bom pensar que nada é para sempre. O importante é envelhecer com dignidade. Não adianta proteger só o nosso patrimônio, é preciso também proteger o patrimônio da nossa existência”, alerta.
Claudia Burlá comenta que o processo de envelhecer nos ensina que temos a oportunidade de antecipar situações para nos proteger e também proteger nossos familiares. No caso do médico, ela considera fundamental ter disponibilidade para ouvir as necessidades e vontades dos pacientes e familiares, prestando solidariedade nos momentos difíceis.
“Outros países tiveram mais tempo para se adaptar à nova realidade, nosso processo de aumento da longevidade está indo muito rápido”, reflete.
A proximidade com sintomas como esquecer coisas, aceitar troco errado na feira ou não lembrar a senha do banco, além de confusões cotidianas, assusta, e nem sempre a família e o médico pensam com um olhar mais amplo.
A médica questiona: “Esquecer não é normal como muitos dizem. O esquecimento pode afetar a funcionalidade de uma pessoa e, dependendo da faixa etária, não é normal e deve ser investigado. O médico deve seguir uma trilha de avaliação para encontrar o diagnóstico e a conduta indicada. O paciente pode se prevenir para continuar tomando decisões até o final da sua vida? O papel dos profissionais de saúde, geriatras, clínicos, psicólogos é estimular as pessoas com mais idade para que pensem no seu futuro caso não tenham mais condições de resolver o que querem para si”.
Outro ponto levantado pela geriatra é a questão dos limites da autonomia. Com a judicialização da Medicina, às vezes as deliberações sobre procedimentos são repassadas pelo médico para o paciente ou para a família, o que não é a melhor maneira.
“O ideal é sempre uma decisão conversada e compartilhada com o paciente e/ou a família. O que chamamos de autonomia solitária ocorre quando o paciente deve resolver sozinho sobre atitudes para gerenciar sua vida, como fazer uma cirurgia, uma quimioterapia ou outras. Na autonomia solidária, essa escolha é apoiada por terceiros. O médico pode até não concordar com uma decisão, por exemplo, de entubar ou não o paciente, mas deverá respeitá-la”, diz.
A lei se preocupa com as questões patrimoniais, mas não com as existenciais do fim da vida. Dos 80 anos em diante vai aumentando cada vez mais o risco de se adquirir uma demência; qualquer um de nós pode ter que passar por isso e a decisão sobre nossas vidas ficará com filhos, netos ou outros familiares. Será que é justo deixar o peso das decisões sobre eles?
Não precisa ser assim, por mais difícil que seja pensar sobre isso. É possível fazer valer os seus desejos com uma Diretiva Antecipada de Vontade.
As Diretivas Antecipadas de Vontade são documentos de manifestação de vontade para cuidados e tratamentos médicos futuros. São de duas espécies: Testamento Vital e procuração para cuidados de saúde (ou Mandato Duradouro), que, quando previstos em um único documento, são chamados de Diretivas Antecipadas de Vontade.
O Testamento Vital é um documento redigido por uma pessoa no pleno gozo de suas faculdades mentais, para dispor sobre cuidados, tratamentos e procedimentos aos quais deseja ou não ser submetida quando estiver com uma doença grave, fora de possibilidades terapêuticas e impossibilitada de manifestar livremente sua vontade. Deve ser feito com o acompanhamento de um médico e um advogado de confiança.
A Procuração para Cuidados de Saúde é a nomeação de uma pessoa de confiança que deverá ser consultada pelos médicos, quando for necessário tomar alguma decisão sobre os cuidados clínicos ou esclarecer alguma dúvida sobre o Testamento Vital, quando o paciente não puder mais manifestar sua vontade.
A Diretiva Antecipada de Vontade é um ato personalíssimo. É a decisão da pessoa sobre tratamentos e ações no final da vida, caso não tenha condições de se comunicar adequadamente. É a expressão máxima da vontade e exercício da autonomia, mesmo quando não é mais capaz de se comunicar. É a oportunidade de se manter protagonista da sua vida até o final, mesmo sem se comunicar diretamente.
A família deve respeitar a Diretiva previamente elaborada, sem críticas ou objeções. Cabe à pessoa que fez a sua eleger quem será o seu procurador de saúde. A função dele é garantir a vontade da pessoa que o escolheu como representante.
Embora não exista no Brasil uma lei que regulamente a Diretiva Antecipada de Vontade, é possível afirmar que, na prática, ela efetivamente existe, mesmo que de forma tímida, pois está em consonância com a norma constitucional, como um negócio jurídico unilateral, pessoal, revogável, gratuito e informal.
A única norma vigente no ordenamento jurídico brasileiro é a Resolução 1995, de 9 de agosto de 2012, que, em seu artigos 1º 14 e 2º 15, define as Diretivas Antecipadas de Vontade como os desejos manifestados pelo paciente acerca de tratamentos a que quer, ou não, ser submetido, especialmente quando incapacitado para se expressar, além de esclarecer questões limítrofes, inclusive quanto à hipótese de manifestação pelo representante designado do paciente.
Na teoria, há vinculação do médico à manifestação de vontade do paciente, uma vez que exaure possíveis e eventuais demandas judiciais, tendo em vista o amparo legitimado por ele no exercício da sua autonomia da vontade.
A Curatela é um mecanismo de proteção para aqueles que, mesmo maiores de idade, não possuem capacidade de reger os atos da própria vida. A medida é uma forma de proteger as pessoas com comprometimento cognitivo para evitar situações de abuso e maus-tratos.
A Lei Brasileira de Inclusão define a Curatela para direitos de natureza patrimonial e negocial. Proíbe que ela alcance o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
A pessoa curatelada deixa de ser absolutamente incapaz para ser considerada relativamente incapaz, transformando a concepção de capacidade. Quem determina a Curatela é o juiz, que analisa o laudo médico. O médico emite um laudo atestando que a pessoa é incapaz de gerenciar sua vida por perda da capacidade cognitiva.
Na velhice, a causa mais prevalente deste tipo de situação aparece nas pessoas que apresentam uma demência (doença neurodegenerativa primária). A Doença de Alzheimer é a forma mais prevalente de demência (70% a 80% de todos os casos de demência). Esta doença compromete diretamente a autonomia que é a capacidade de autodeterminação e tomadas de decisão.
Para casos em que isso acontece, o recurso é a Curatela, que está vinculada à Lei Brasileira de Inclusão, que, por sua vez, se relaciona com o Instituto do Idoso.
O promotor de justiça Luiz Claudio de Carvalho de Almeida explica que a Curatela deve ser menos restritiva, com maior protagonismo do curatelado, prevalência do modelo de apoio em detrimento do de substituição.
“É preciso pesar a proporcionalidade e a temporalidade, com acompanhamento periódico da situação do curatelado. A função da Curatela é a de potencializar a vontade do curatelado. Por isso é importante determinar o que você quer enquanto está saudável”, diz.
Para ser determinada a medida judicial, é necessário que a capacidade cognitiva tenha sido reduzida gravemente, ou seja, quando a pessoa já não tem condições de fazer determinadas escolhas.
O professor de Bioética Josimário João da Silva, da Universidade de Pernambuco, revela que há dois projetos de lei que regulamentam a Diretiva Antecipada de Vontade. Para ele, se nós somos instrumentos de transformação, a Diretiva também deve ser encarada assim.
“A Resolução 1995, de 2012, foi pensada a partir de um clamor da sociedade para definir o processo de autonomia no momento de finitude da vida. É vital trazer uma base ética bem fundamentada para o debate, para que as pessoas possam efetivamente participar do seu processo de vida e de morte. É uma forma de valorizar a autonomia, para quando a perspectiva estiver reduzida, e manter a dignidade do paciente. É dar protagonismo ao padecente, promover o diálogo humano”.
O professor traz ainda para a discussão o artigo 5º, título II, capítulo 1 da Constituição Federal: Ninguém será submetido à tortura e nem a tratamento degradante.
“O mesmo artigo determina que a intimidade é inviolável. Portanto, o indivíduo é soberano para decidir sobre sua vida. No Brasil, não existe a tradição de autonomia do paciente decidir como quer ser tratado pela equipe médica, mas essa tem o dever de acolher o indivíduo que está no processo de sofrimento e morte e reduzir a sua angústia. Por isso é importante quanto mais cedo começar a discutir a questão e garantir a escritura pública lavrada em cartório competente”, afirma.
A vida segue em frente, mas se por acaso uma morte súbita e tranquila não estiver à sua espera, e sim uma morte lenta, com paradas inevitáveis no caminho, que tal deixar tudo preparado para que as suas decisões sejam respeitadas?
Num primeiro momento, pensar sobre isso pode parecer cruel, mas, num segundo momento, pode dar muita tranquilidade saber que quem decide sobre sua vida é você, a pessoa que melhor conhece suas necessidades, seus valores, suas crenças, seus temores.
E o bom nessa história é saber que, depois que tudo estiver resolvido, você não precisa mais pensar na morte e, sim, na vida que tem pela frente. E viver da melhor maneira possível.
Quero que a minha família respeite minhas vontades; não quero morrer sozinho; quero ser visto apenas pelas pessoas que eu escolher. Já pensou em jogar com cartas que oferecem sugestões nessa linha?
Cartas como essas estão no Cartas na Mesa (Go Wish), que a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia oferece por meio de sua Comissão Permanente de Cuidados Paliativos, como uma possibilidade para falar sobre a morte e a vontade com pacientes, facilitando a expressão das vontades e preferências em relação ao final da vida.
Cartas na Mesa foi desenvolvido nos EUA como um jogo autoaplicável para o público leigo, em duas modalidades: Paciência e Duplas. No entanto, em função da complexidade da temática do final da vida, a Sociedade oferece orientações adicionais aos profissionais para que esse recurso seja utilizado de uma forma mais segura e consequente no Brasil.
Fonte: A Tribuna