- Da Responsabilidade do Profissional Médico Liberal:
Inicialmente, no âmbito jurídico, importa conceituar a ideia de responsabilidade como um todo, a qual engloba uma obrigação de reparação de um prejuízo decorrente de uma ação, em que se pese a devida comprovação do nexo causal estabelecido entre a conduta adotada e o resultado (dano). Neste contexto, entende-se como responsabilidade profissional, no mundo do exercício da medicina, como um rol de obrigações às quais está sujeito o médico, cujo descumprimento o fará sofrer consequências, impostas normativamente, expressadas nos diversos diplomas legais referentes ao assunto em debate.
Dessa forma, em outras palavras, responsabilidade compreende o conhecimento daquilo que é justo e necessário, não somente no sentido moral, mas também dentro de um contexto de direitos e deveres, do que é lícito e devido. Como leciona o clássico jurista Georges Ripert, da lei moral não apenas se subentende qualquer vago ideal de justiça, mas uma lei precisa que rege a sociedade moderna, e que é respeitada visto que é imposta pela fé, a razão, a consciência e pelo respeito à dignidade das outras pessoas (A regra moral nas obrigações civis, São Paulo: Saraiva, 1937).
Portanto, o termo ‘’responsabilidade’’ pode ser empregado tanto sob o prisma ético quanto jurídico, ainda mais no que tange ao exercício profissional liberal, em que necessariamente se intrincam os valores morais e legais, uma vez que as razões jurídicas jamais devem estar desassociadas das razões morais.
Antigamente, era prevalecente a ideia de ‘’ampla liberdade de agir’’ do médico, chegando a atingir o exagero de se admitir a medicina ser ‘’um mandato ilimitado junto à cabeceira do doente’’. Ademais, ainda se tinha fortemente estabelecido o conceito de que o diploma do médico era prova incontestável de competência e idoneidade, e que a medicina não consistia em uma ciência exata, tal como a matemática.
Felizmente, os tempos mudaram, e estes ideais permanecem no passado.
Atualmente, o princípio da responsabilidade profissional é fortemente aceito por todas as esferas sociais (médicos, juristas e a própria sociedade civil), desde que, no momento da apreciação da conduta cometida pelo médico, se reste caracterizada uma conduta atípica, irregular ou inadequada contra o paciente, durante ou em face do exercício médico – Responsabilidade Objetiva, ou seja, responsabilização mediante comprovação de conduta médica culposa, seja por negligência, imperícia ou imprudência.
Outrossim, se espera que haja plena transparência e seja respeitado o direito de ampla defesa do acusado, conforme preconizam os princípios do Direito Processual, no momento da apuração dos fatos envolvidos. Para se responsabilizar subjetivamente o profissional médico liberal, deve se restar sobejamente comprovada a inobservância das regras técnicas, ou atípica conduta no momento da atividade funcional.
Neste enquadramento, abre-se espaço para inúmeros questionamentos referentes às possibilidades de responsabilização médica. No tocante ao caso de um médico poder responder por erro de diagnóstico ou por erro de conduta, por exemplo, a opinião da maioria vai ao encontro da tese do afastamento da ilicitude do ato, desde que o dano não tenha sido provocado por clara e manifesta negligência, tendo o médico não examinado seu paciente de acordo com as regras e técnicas atualizadas e disponíveis da medicina e de sua especialidade em particular.
Destarte, depreende-se que, quando da avaliação da conduta culposa do médico, torna-se evidente que, sem a devida comprovação de dano efetivo e real (nexo de causalidade), não há como se caracterizar a responsabilidade profissional. A determinação da concretude do dano, além da indispensabilidade em relação à configuração da responsabilidade médica, mediante comprovação de nexo causal, ainda pode estabelecer o grau da culpa aplicável, além da extensão de sua liquidação judicial.
Com o intuito de se evitar problemas desta natureza, o profissional médico deve sempre se atentar aos seus deveres básicos de conduta, os quais serão detalhadamente explanados a seguir.
2. Dos Deveres de Conduta do Médico:
É imprescindível se levar em conta os deveres de conduta de um profissional em determinado ato médico, tanto no âmbito médico quanto legal, em qualquer que seja a forma de se avaliar sua responsabilidade.
Conforme depreendido anteriormente, entende-se por responsabilidade o dever de reparação de prejuízo decorrente de uma conduta, tendo nela incluído o elemento da culpa (Responsabilidade Subjetiva) ou não (Responsabilidade Objetiva). Por outro lado, compreende-se como dever de conduta, no exercício da medicina, um rol de obrigações a que se encontra sujeito o profissional médico, cujo descumprimento poderá levá-lo a sofrer sanções previstas legalmente.
Dessa forma, é possível resumir que responsabilidade é o conhecimento do que é justo e necessário por meio da imposição de um sistema de obrigações e deveres em razão de danos causados a outrem.
2.1. Do Dever de Informação:
Este tópico consiste em todos os esclarecimentos na relação médico-paciente que se consideram como incondicionais e obrigatórios. São eles:
- Informação ao paciente: É indispensável que o paciente seja devidamente informado pelo médico responsável acerca da necessidade de adoção de determinadas condutas ou intervenções, além de seus inerentes riscos e consequências. Caso o paciente seja menor de idade ou incapaz, embora seus responsáveis ou representante legal tenham o conhecimento de seu caso, ele possui o direito de ser informado e esclarecido, principalmente no tocante às precauções essenciais. O dever de informar é imperativo como requisito prévio para o consentimento.
O ato médico apenas alcança sua verdadeira finalidade e seu incontestável destino através do consentimento do paciente ou de seus responsáveis legais (princípio da autonomia ou da liberdade, no qual todo indivíduo tem consagrado o direito de ser autor de seu próprio destino).
Ademais, é exigido que o consentimento seja esclarecido, ou seja, obtido de um indivíduo capaz civilmente e apto para entender e considerar razoavelmente uma proposta ou conduta médica, totalmente isenta de vícios (coação, influência ou indução). Tal consentimento não pode ser colhido, por exemplo, através de uma simples assinatura, após uma leitura apressada em textos minúsculos de formulários a caminho da sala de operação, mas sim por meio de uma linguagem acessível, adequada ao nível de conhecimento e compreensão do paciente (princípio da informação adequada).
Excepcionalmente, em casos do paciente não poder falar por si próprio, ou é incapaz de compreender o ato médico a ser executado, restará a ele obter o consentimento substituto, através de seus responsáveis legais. Entretanto, deve-se considerar ainda que a capacidade de consentimento do indivíduo não reflete as mesmas proporções éticas e legais. Sob o prisma ético não há a mesma inflexibilidade da lei, uma vez que certas decisões, embora partindo-se de indivíduos considerados civilmente incapazes, devem ser respeitadas no que tange à avaliações de situações mais delicadas (Ex.: Portadores de transtornos mentais, os quais, mesmo legalmente incapazes, não devem ser isentos de sua capacidade moral de decidir sobre sua própria vida).
Ainda se deve levar em conta que sempre que houverem mudanças significativas nos procedimentos terapêuticos, deve-se obter o consentimento continuado, visto que o aval médico dado anteriormente possuía tempo e atos pré-definidos (princípio da temporalidade). Além disso, é admitido também que, em qualquer momento do vínculo profissional, o paciente possui o direito de deixar de consentir com determinada prática ou conduta, mesmo anteriormente consentida por escrito, revogando-se, assim, a permissão anteriormente outorgada (princípio da revogabilidade). O consentimento não constitui ato inexorável e permanente.
Sob outra esfera, há ocasiões em que, apesar de haver uma permissão tácita ou expressa prévia, não se justifica o ato permitido. Tanto as normas éticas quanto jurídicas podem se impor a essa vontade, e a autorização, ainda que escrita e feita de forma consciente, não outorgaria certas práticas médicas. Nessas ocasiões, quem legitimaria o ato médico seria sua indiscutível necessidade, não se limitando apenas à permissão (princípio da não maleficência). O mesmo é feito em momentos em que o paciente nega autorização diante da incondicional e inadiável necessidade do ato salvador, ou seja, iminente perigo de vida. Nesta circunstância, o tratamento arbitrário do médico estaria justificado, em que não se argumenta a antijuridicidade do constrangimento ilegal, e nem se podendo exigir sempre um consentimento devido. O bom senso preconiza que, tratando-se do inadiável e indispensável, estando o interesse do paciente em jogo, o médico deve realizar, por meios moderados, aquilo que sugere sua consciência e o que é mais adequado para a saúde do paciente no momento (princípio da beneficência, que não se confunde com paternalismo médico).
- Informações sobre as condições precárias de trabalho: Já é sabido que muitos maus resultados médicos estão diretamente atribuídos às péssimas e precárias condições de trabalho disponibilizadas, mesmo que se tenha um grande avanço nos dias atuais em termos propedêuticos. Em meio a este cenário caótico, torna-se mais simples de entender o que pode acontecer em certos locais de trabalho médico nos quais os danos e vítimas são multiplicados, onde torna-se mais fácil, portanto, culpar os médicos.
Por essas razões, não se pode separar dos deveres fundamentais do médico as informações das condições precárias de trabalho, registrando-as em locais próprios e até omitindo-se de exercer certos atos eletivos da prática profissional. No entanto, deve haver o cuidado de conduzir-se prudentemente nas situações urgentes e de emergência.
Por fim, deve o médico se manifestar sempre a respeito das condições de seus instrumentos de trabalho, a fim de não ser rotulado de negligente em razão de seus objetos, principalmente se o dano se verificou em decorrência da má utilização destes ou por conta de defeitos conhecidos apresentados.
- Informações registradas no prontuário: O prontuário do paciente consiste em em uma das fontes primárias de consulta e informação a respeito de um procedimento médico contestado. Portanto, é importantíssimo que nele estejam registradas todas as informações pertinentes e oriundas da prática médica. Infelizmente, em razão de hábito ou alegada economia de tempo, os médicos não têm dado a devida atenção à documentação do paciente, com destaque para a elaboração cuidadosa do prontuário.
O prontuário médico não apenas engloba o registro de anamnese do paciente, mas também todo o acervo documental ordenado e conciso, referente à anotações e cuidados médicos prestados, além de documentos anexos. Dentre os principais elementos também constam: O exame clínico do paciente com suas fichas de ocorrências e de prescrições terapêuticas; relatórios de enfermagem; informações anestésicas e cirúrgicas; ficha de registro de exames complementares; até cópias de atestados e de solicitações de práticas auxiliadoras de diagnóstico.
Nunca deve ser atrelado o prontuário médico a uma ideia de peça meramente burocrática para fins de contabilização estatística ou de interesse de cobrança dos procedimentos realizados ou de despesas hospitalares. Deve-se pensar sempre em possíveis implicações técnicas, éticas ou legais que possam ocorrer eventualmente, sendo o prontuário um elemento probatório fundamental nas contestações de irregularidades que possam vir a ser debatidas em juízo.
Enfatiza-se também que não há qualquer inconveniente em substituir o modelo tradicional de prontuário por um método de registro mais moderno. Pelo contrário, a modernização do prontuário médico, como por exemplo o Prontuário Eletrônico (tema já discutido em nosso artigo ‘’A relevância do prontuário médico), desde que seja assegurada a confidencialidade de suas informações e a fácil disponibilidade destas ao paciente, pode ser responsável por trazer inúmeros benefícios e facilidades, tanto para o médico quanto profissional liberal, quanto para instituições médicas e hospitalares.
- Informações aos outros profissionais: Primeiramente, deve-se ressaltar que um profissional médico não pode atuar sozinho, uma vez que a participação de outros profissionais da saúde em determinados casos torna-se imprescindível. De forma a tornar esta cooperação proveitosa para o paciente, é de fundamental importância que não haja qualquer sonegação de informações consideradas pertinentes e relevantes.
Tal exigência não importa apenas por uma questão de cordialidade entre colegas de profissão, tampouco por conta de requisitos de caráter meramente burocrático, mas sim pelo motivo de que a ausência de envio de informações acerca de tratamentos e meios complementares de diagnóstico constitui grave deslize no que tange aos deveres de conduta do médico. Não se deve permitir limitações de informação a outro profissional da área, com exceção de desautorização por parte do paciente, familiar ou responsável legal.
Enquanto muitos médicos acreditam que omissões de informações necessárias podem trazer consigo insanáveis prejuízos ao paciente (mesmo este não permitindo a troca de informações entre profissionais), outros defendem que a vontade do paciente deve ser sempre respeitada, sem exceções. Por conta dessa dicotomia, o debate acerca do tema se mostra bastante complexo e controverso.
Outro fato grave referente à temática consiste na falta de informações fornecidas aos médicos substitutos e/ou plantonistas no tocante aos pacientes internados na entidade hospitalar. A troca de informações, imprescindivelmente, deverá ser feita, tanto de forma verbal, quanto através do registro circunstanciado em livros de ocorrências.
2.2. Do Dever de Atualização:
O exercício regular da medicina não requer somente uma habilitação acadêmica legal, mas também, principalmente, o aprimoramento continuado do profissional, adquirindo-o por meio dos conhecimentos recentes que englobam sua área de atuação, tanto no que se refere às técnicas de exame, quanto aos métodos de tratamento, seja em publicações especializadas, congressos e cursos de especialização, ou em estágios em centros médico-hospitalares de maiores referências.
Por trás disso, juridicamente falando, o que se procura saber é se, no determinado ato médico passível de debate, é possível admitir a imperícia, e esta se restará configurada caso o dano tenha sido causado por inobservância de normas técnicas e/ou despreparo profissional, em face da inadequação de conhecimentos científicos e práticos do ofício.
No que tange aos erros de técnica, estes são mais difíceis de serem comprovados e apurados, devendo o magistrado encarregado, portanto, se omitir desta avaliação, valendo-se da experiência e conhecimento técnico dos peritos. Por outro lado, a comprovação de culpa ordinária torna-se menos complexa, como por exemplo em casos de um médico se ausentar de seus plantões, e, consequentemente, um paciente internado sofrer um dano em razão de omissão. Já a culpa profissional torna-se mais complexa em sua apreciação, visto que nem sempre há consenso na utilidade ou na indicação de certa técnica ou conduta.
O que importa no momento da apreciação e averiguação de culpa por imperícia, nada mais, nada menos, é saber se o profissional agiu com falta de conhecimento e habilidades exigidos minimamente pela atuação médica.
Ademais, um dos principais critérios de avaliação no cumprimento do dever de atualização do médico consiste em saber se determinada prática adotada é reconhecida e aceita pelas sociedades de especialidades médicas, ou então ensinada nos cursos de medicina. Se a conduta se encontra consagrada pela experiência e comunidade médica, nenhum profissional deverá se opor.
Em síntese, é de fundamental importância que o médico se mantenha sempre atualizado com os constantes avanços de seu ofício. O conhecimento médico continuado não deve se limitar apenas a um direito, mas também uma obrigação.
2.3. Do Dever de Vigilância e Cuidados:
O ato médico, quando avaliado a partir de sua integridade e licitude, deve estar sempre isento de qualquer tipo de omissão que possa vir a ser caracterizada como inércia, passividade ou descaso em relação ao paciente, podendo ser observada tanto em casos de abandono de paciente, quanto em restrições de tratamento e/ou retardo no momento de necessário encaminhamento.
O médico será considerado omisso de seu dever de vigilância quando não observar os reclamos de cada circunstância, além de não realização de tratamento necessário, troca de medicamentos através de letra indecifrável e esquecimento de objetos em operações cirúrgicas. Igualmente será caracterizado omisso do dever de vigilância também o médico que se limita a prescrever sem ao menos analisar ou ver o paciente, que recomenda medicamentos via telefone sem confirmar o diagnóstico posteriormente e que deixa de solicitar exames necessários.
A forma mais comum de negligência nestes casos constitui o abandono do paciente. Uma vez estabelecido o vínculo contratual entre médico e paciente, a obrigação de continuidade de tratamento é absoluta, salvo em situações excepcionais, como em acordos mútuos ou devido a motivos de força maior. A caracterização de abandono deve se restar bastante clara, como em casos em que o médico é certificado que o paciente ainda necessita de assistência, e mesmo assim o negligencia.
Neste contexto, há uma questão bastante interessante a ser esclarecida: Poderá o médico faltar com o dever de vigilância em decorrência de omissão de outro médico?
Este fato é o que se chama de negligência vicariante, ou seja, quando determinadas tarefas exclusivas de um profissional são repassadas a outro e o resultado não é atingido. Um ótimo exemplo concreto seria o caso de um médico que, ao confiar no colega plantonista, deixa o plantão acreditando fielmente na pontualidade deste, a qual não se verifica. E, em decorrência do atraso do plantonista, o paciente internado vem a sofrer danos. Neste caso, indaga-se: Quem faltou com o dever de vigilância e de cuidados?
A questão é que, nessa hipótese, ambos são infratores. Em contrapartida, o mesmo não se aplica em casos em que o médico é substituído por um colega e, mesmo a seu pedido, este acaba agindo de forma negligente. Não seria justo que o primeiro médico respondesse pelo completo descaso de seu substituto. A condição de profissional médico liberal, habilitado legal e profissionalmente, afasta qualquer possibilidade de proposição, cabendo a cada um responder por seus atos. É estabelecido que esta relação entre profissionais é baseada no ‘’princípio da confiança’’, no qual um profissional acredita que o outro agirá de acordo com a conduta correta. O mesmo se aplica em casos de um chefe de equipe se um de seus membros faltou com o dever de vigilância para aquilo que é de sua competência.
Ademais, se compreende como ausência de dever de vigilância a displicência favorecedora de resultados inidôneos de exames complementares, capazes de comprometer completamente o diagnóstico e terapia adequada dos pacientes, em laboratórios de anatomia patológica, patologia clínica, radioisótopos, citologia, imunologia, hematologia e em serviços de radiodiagnóstico. Os responsáveis por resultados de exames subsidiários, executados por centros complementares de diagnóstico, são seus diretores, cuja presença se torna imperiosa na elaboração de laudos, embora o exame possa tecnicamente ser realizado sob apenas sua supervisão. Resultados equivocados e/ou trocados com de outro paciente podem vir a causar graves danos, faltando seus autores (radiologistas, hematologistas, etc) com o dever de cuidado exigido na prática profissional. Dessa forma, qualquer resultado incorreto, cometido por erros ou falhas humanas, passíveis de comprometer diagnósticos ou terapias, constituem falta ao dever de cuidar, implícito na relação contratual médico-paciente, tornando-se motivo para elaborações de ações de arguição de responsabilidade médica.
Por fim, é fundamental destacar também que a obrigação contratual vinculada ao responsável pelo centro de complementação de diagnóstico possui com o cliente uma obrigação de resultado, e não de meio.
2.4. Do Dever de Abstenção de Abuso:
Em momento de avaliação de dano produzido por ato médico, deve ficar claro, entre outros requisitos, se o profissional agiu com a devida cautela de vida, descaracterizando-se, portanto, a precipitação, o inoportunismo ou a insensatez. Isso se deve porque, no que tange a norma penal relativa aos atos culposos, é exigido das pessoas que sejam cumpridas certas regras, cuja finalidade é evitar danos aos bens jurídicos tutelados.
Ao se exceder nos métodos terapêuticos ou em meios propedêuticos mais arriscados, o profissional médico assume uma forma de desvio de poder, e, caso o dano tenha sido causado por isso, não há como negar a responsabilidade profissional. Mesmo estes meios não sendo invasivos ou de grande porte, basta apenas ficar patente sua desnecessidade, assumindo o autor da conduta um risco excessivo, ultrapassando uma conduta não permitida, além de que ele próprio conheça, no momento da ação, sobre o risco para o bem tutelado (Essa capacidade de previsibilidade de dano em um indivíduo de boa qualificação profissional compreende o dever subjetivo de cuidado, cujo grau de responsabilidade é mais elevado).
No contexto do dever subjetivo de cuidado, deve-se avaliar em cada caso o que deve ser devidamente seguido, exigindo-se, portanto, do autor da conduta médica o mínimo de capacidade para o exercício daquele ato, além da certeza de que outro profissional, em seu lugar, teria a mesma condição de prever o mesmo dano. Todo e qualquer ato médico mais ousado ou inovador, fora do consentimento esclarecido do paciente ou representante legal, tem de ser claramente justificado e legitimado pela imperiosa necessidade de intervir.
Faltará com o dever de abstenção de abuso o médico que opera pelo relógio, que dispensa a fundamental participação do anestesista, ou que delega certas práticas médicas a pessoal técnico ou estudantes de medicina, ausentando-se da devida supervisão ou instrução (neste último caso, mesmo sendo comprovada a imprudência ou negligência dos praticantes, não se exclui a responsabilidade do médico supervisor pela denominada ‘’culpa in vigilando’’).
Além disso, também constitui abuso ou desvio de poder realizar experiências médicas no homem, sem qualquer necessidade terapêutica, colocando em risco sua vida. Diferentemente do campo das pesquisas científicas realizadas em voluntários humanos, tal ato médico constitui um atentado à dignidade humana, diferindo completamente em relação às finalidades acadêmicas de pesquisa humana, a qual atende diretamente aos interesses da sociedade. Também não se pode atribuir fato danoso ao paciente em casos de ‘’risco permitido’’, ou seja, risco assumido em favor do paciente.
O dever de evitar abuso, muitas vezes, acaba sendo comprometido por conta da vaidade do profissional, o qual prefere ousar em técnicas audaciosas ou recém criadas, sem a devida eficiência cientificamente comprovada, ignorando práticas convencionais e seguras. Diante do dano cometido em tais situações, não estaremos diante de um profissional imperito, mas sim imprudente, até porque, em um mesmo ato, não há como coexistir estes dois elementos de culpa (um exclui o outro).
Dr. José Q. Salamone, advogado especialista em Direito Médico.
Gabriel Salamone, assistente jurídico.